Imagina que a tua campainha inteligente te envia uma notificação a dizer: “O João, o teu vizinho, está à porta”. Conveniente, certo? Agora, imagina que essa mesma tecnologia está a criar uma base de dados com o rosto de todas as pessoas que passam na tua rua – amigos, carteiros, crianças a brincar – sem o seu consentimento. Assustador? É precisamente este o dilema no centro da mais recente e controversa funcionalidade da Amazon para as suas populares câmaras e campainhas Ring.
A empresa anunciou uma nova funcionalidade chamada “Familiar Faces” (Rostos Familiares) que, como o nome indica, dá às tuas câmaras a capacidade de usar reconhecimento facial para identificar pessoas. A funcionalidade ainda nem foi lançada, mas já está a gerar uma onda de críticas e preocupação por parte de especialistas em privacidade, utilizadores e até de pessoas que simplesmente vivem num bairro cheio de dispositivos Ring.
Como funciona o “reconhecimento facial” da tua campainha?
A ideia, no papel, é simples. Quando a tua câmara Ring detetar uma pessoa, poderás “etiquetá-la” na aplicação com um nome. Por exemplo, podes criar um perfil para o teu vizinho, um familiar ou o estafeta que te entrega as encomendas. A partir desse momento, sempre que essa pessoa for detetada, a notificação que recebes será personalizada (“A avó está à porta”), e poderás pesquisar facilmente na aplicação por todos os vídeos em que essa pessoa aparece.
A funcionalidade, que será lançada em dezembro para os novos dispositivos da marca, virá desligada por defeito e exigirá uma subscrição paga do serviço Ring Home Premium. No entanto, estas salvaguardas não estão a ser suficientes para acalmar os ânimos.

O “Big Brother” à porta de casa: as razões do pânico
A controvérsia em torno do “Familiar Faces” assenta em três grandes preocupações: legais, de consentimento e de segurança.
A responsabilidade legal é tua (e boa sorte com isso)
Numa declaração ao The Washington Post, um porta-voz da Ring colocou o ónus legal inteiramente sobre o utilizador, afirmando que é da responsabilidade do proprietário da câmara seguir as leis locais que exigem o consentimento de uma pessoa antes de a identificar com reconhecimento facial.
Isto cria um autêntico campo de minas legal para o consumidor. Como é que se obtém o consentimento explícito do carteiro? E dos amigos dos teus filhos que vêm brincar? É uma forma de a Amazon se proteger legalmente, transferindo toda a responsabilidade para ti.
E quem não tem uma Ring? O problema do consentimento
A questão mais vasta é a da privacidade do público em geral. Qualquer pessoa que caminhe na via pública pode ter o seu rosto capturado, analisado e armazenado numa base de dados privada de um utilizador da Ring, sem o seu conhecimento ou consentimento. Com milhões de câmaras Ring instaladas em todo o mundo, esta funcionalidade contribui para a criação de uma vasta e descentralizada rede de vigilância por reconhecimento facial.
O passado sombrio da Ring e a desconfiança nos dados
A confiança do público na capacidade da Ring para gerir estes dados biométricos sensíveis é extremamente baixa, e por boas razões. A empresa tem um historial problemático de privacidade, que inclui casos de hackers a acederem a câmaras dentro das casas das pessoas e, mais grave ainda, relatos de funcionários da própria empresa que espiaram as filmagens privadas dos clientes. Com este currículo, a promessa de que irão guardar os teus dados faciais de forma segura soa a oco para muitos.
A desconfiança é tal que a Amazon já admitiu que a funcionalidade não será lançada em locais com leis de privacidade mais rígidas, como os estados do Illinois e do Texas, nos EUA. É um reconhecimento implícito de que a sua tecnologia opera numa zona cinzenta da legalidade.
Embora a Google tenha uma funcionalidade semelhante nas suas câmaras Nest, a grande diferença é que os modelos mais recentes da Google processam e armazenam estes dados localmente no dispositivo, de forma encriptada, em vez de os enviarem para a nuvem.
A reação online tem sido esmagadoramente negativa, com muitos utilizadores da Ring a ameaçarem cancelar as suas subscrições. A conveniência de saber quem está à porta parece, para muitos, um preço demasiado alto a pagar pela erosão da privacidade, tanto a sua como a de toda a sua vizinhança.
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