Quando compras uma licença vitalícia do Windows ou do Office, assumes que ela é tua para sempre, certo? E que, se um dia já não precisares dela, podes vendê-la, tal como farias com um carro ou um livro. Bem, a Microsoft tem uma opinião diferente, e essa opinião pode virar de cabeça para baixo toda a indústria de software em segunda mão na Europa.
Uma batalha legal que está a decorrer esta semana no Tribunal de Recurso da Concorrência do Reino Unido colocou a gigante tecnológica contra a ValueLicensing, uma empresa britânica especializada na revenda de licenças de software usadas. O que começou como uma queixa por práticas anti-competitivas, com um pedido de indemnização de 270 milhões de libras, transformou-se em algo muito maior: a Microsoft está agora a argumentar que a revenda de licenças do Windows e do Office nunca foi, na verdade, legal.
A decisão deste tribunal pode ter consequências gigantescas para milhares de empresas e utilizadores em toda a Europa que dependem deste mercado para aceder a software essencial a preços mais acessíveis. Se a Microsoft ganhar, um negócio de milhões pode simplesmente desaparecer da noite para o dia, mudando para sempre as regras do jogo da propriedade de software.
A reviravolta inesperada no argumento da Microsoft
Inicialmente, o caso parecia ser mais uma disputa sobre concorrência. A ValueLicensing acusava a Microsoft de estrangular o mercado de software em segunda mão através de táticas comerciais agressivas. Segundo a empresa de revenda, a Microsoft oferecia descontos significativos nos seus novos serviços de subscrição a clientes que, em troca, abdicassem das suas licenças vitalícias. Esta prática, alegam, retirava do mercado as licenças que poderiam ser revendidas, secando a “matéria-prima” de empresas como a ValueLicensing.
Para além disso, a queixa aponta para a inclusão de cláusulas contratuais que limitavam os direitos de revenda em troca de preços mais baixos, o que a ValueLicensing considera uma forma de abuso de posição dominante. A empresa alega que estas práticas lhe custaram cerca de 270 milhões de libras em lucros perdidos e levou o caso a tribunal para ser compensada.
A defesa inicial da Microsoft, como seria de esperar, negava qualquer comportamento anti-competitivo. No entanto, com o avançar do processo, a estratégia da gigante de Redmond mudou de forma dramática. Em vez de continuar a dizer “nós não fizemos isso”, a Microsoft passou a argumentar algo muito mais radical: “este mercado nunca deveria ter existido”. Esta reviravolta apanhou todos de surpresa e elevou a importância do caso a um nível completamente novo.

O diabo está na interface: a arma secreta da Microsoft
Então, como é que a Microsoft pretende provar que um mercado que existe há anos é, afinal, ilegal? A resposta está num pormenor técnico que pode parecer insignificante, mas que é o centro de toda a sua argumentação: a diferença entre o código de um programa e a sua interface gráfica (GUI). A Microsoft alega que os seus direitos de autor não se aplicam apenas às linhas de código que fazem o software funcionar, mas também a todos os elementos visuais com que interagimos — os ícones, os menus, as janelas.
A lei europeia que permite a revenda de software, a Diretiva Europeia de Software, foi criada a pensar no código. A Microsoft argumenta que essa diretiva não se aplica à interface gráfica, que é uma criação artística e visual protegida por outras regras de propriedade intelectual. Se o tribunal concordar com esta interpretação, a revenda de uma licença do Windows ou do Office, que inclui o direito de usar essa interface, torna-se ilegal.
Para reforçar a sua posição, a Microsoft está a basear-se num precedente legal de um caso conhecido como “Tom Kabinet”, que decidiu que, embora a revenda de software fosse permitida, os e-books eram diferentes. A Microsoft quer agora que os seus produtos sejam vistos da mesma forma, argumentando que a interface é uma componente distinta do código e, como tal, não pode ser revendida. É uma jogada legal complexa, mas com o potencial de aniquilar por completo a concorrência no mercado de segunda mão.
Um mercado de milhões pendurado por um fio
As implicações desta batalha legal vão muito para além da disputa entre a Microsoft e a ValueLicensing. Se a Microsoft for bem-sucedida, poderá criar um precedente que afeta todo o software vendido na Europa. Empresas, escolas, organizações sem fins lucrativos e até utilizadores individuais que dependem de licenças em segunda mão para reduzir custos podem ver essa opção desaparecer.
Jonathan Horley, o chefe da ValueLicensing, não esconde a sua estupefação com a mudança de tática da Microsoft, classificando-a como uma “coincidência notável”. Para ele, é evidente que a Microsoft, ao ver-se numa posição difícil para se defender das acusações de práticas anti-competitivas, decidiu optar pela “bomba atómica”: tentar ilegalizar todo o mercado.
O futuro deste próspero setor está agora nas mãos do tribunal. A decisão não será fácil e, seja qual for o resultado, irá certamente criar ondas de choque por toda a indústria tecnológica. A questão fundamental que está em cima da mesa é simples, mas profunda: quando compras uma licença de software, o que é que estás realmente a comprar? Um produto que te pertence ou apenas um direito de utilização limitado e intransmissível? A resposta a essa pergunta pode estar prestes a mudar.
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