Antes de mais, um aviso aos desprevenidos: este texto não pretende ser uma análise exaustiva de Destiny 2, e está a ser escrito por alguém que não jogou o original e portanto estará pouco ou nada qualificado para estabelecer pontos de contacto e pontos de diferenciação entre o primeiro jogo e a sua estratosférica sequela. Não apenas isso, mas este é um texto escrito após não mais que dez horas com a obra da Bungie, e portanto estará longe de oferecer uma visão caleidoscópica sobre todos os seus pequenos detalhes e tudo aquilo que ele tem para oferecer.
Mais ainda: este é um texto escrito por alguém que não tem pejo de encabeçar um artigo sobre um dos maiores produtos culturais do ano citando Tony Carreira, ou porventura um qualquer rebuscado artista sul-americano de que nunca ninguém ouviu falar. Não digam que não vos avisei.
Ainda aí estão, almas audazes? Então apertem o cinto e preparem-se para o impacto, porque Destiny 2 começa com um bang.
Passa-se uma hora desde que pela primeira vez carregamos o jogo e já os nossos sentidos foram atacados de todas as formas e feitios, sem tempo para pôr a cabeça à tona. O primeiro contacto com Destiny 2 é toda uma lição de coreografia, uma espécie de ballet interativo em que várias peças conspiram para redundar num efeito devastador.
A nossa cidade, e portanto a base emocional do nosso “guardião” está sob ataque por parte de uma qualquer força alienígena, a sua destruição é iminente e cabe a nós – a quem mais? – travá-la. À nossa volta, a multiplica-se a ruína, a música techno não dá descanso e, por muitos cartuchos que gastemos, os sacanas dos inimigos, que caem do céu aos magotes, não dão tréguas. A certa altura, a nossa “vida” aproxima-se perigosamente do limiar inferior, e sabemos que o fim é inevitável; nisto, sem aviso, somos salvos no último fôlego por um outro jogador, alguém, como nós, metido nesta batalha com a consciência de que a fuga para a frente é a única opção. Resta disparar, esconder, disparar, correr e disparar novamente, uma dança familiar mas que ainda assim raramente tem este tipo de intensidade… e subitamente sucumbimos, sem apelo nem agravo. E apaga-se a luz.
Destiny 2 é um MMO, ou jogo multijogador massivo online – expressão que por alguma razão soa muito menos interessante em Português do que no original -, o que, na prática, significa duas coisas: a primeira, de que partilhamos o mundo virtual com outros jogadores como nós, aos quais podemos juntar forças “contra o ambiente”, numa série de missões ou eventos públicos em que se faz valer o e pluribus unum para derrotar inimigos demasiado fortes para o combatente solitário, ou “contra o jogador”, enfrentando esses outros jogadores nos tradicionais modos de jogo competitivos online; a segunda, de que o jogo depende de uma ligação à internet para funcionar, e depende também da estabilidade dos servidores da Bungie (o que, nos primeiros dias após o lançamento do jogo, causou alguns dissabores quando se verificaram as inevitáveis dores de crescimento). Sem rede, Destiny 2 não existe; com ela, é uma experiência comunitária por vezes arrebatadora.
Olhemos para os números. Há vários oceanos de distância entre um jogo como Stardew Valley – ou muitos outros, já que a cena indie também chegou aos videojogos para ficar -, essencialmente um trabalho de amor e produto da dedicação de um homem obstinado, com quase tão poucos meios como os que tem o escritor perante a página em branco, e um monstro como a saga Destiny, cujo investimento total, passado, presente e futuro, pode aparentemente, contas feitas, tocar nos 500 milhões de dólares, também conhecidos como o custo de produção de 500 milhões de Minecrafts.
Este acumular de dólares, como não podia deixar de ser, nota-se em cada frame do jogo: está nas cutscenes, que parecem ter sido retiradas de um daqueles filmes de super-heróis que a Marvel lança, como crescentes graus de investimento e proporcional falta de interesse, a cada Verão, está nos atores contratados para dar voz aos personagens (vale muito ter o timbre autoritário de Lance Reddick, o Cedric Daniels de The Wire, a comandar-nos pelo campo de batalha), está nos gráficos-de-levar-a-consola-aos-píncaros (Destiny 2 é realmente bonito. Não nos lembramos de ficar tão impressionados pelo efeito da luz filtrada por ventoinhas de ar condicionado desde os tempos do saudoso primeiro Splinter Cell). E está também na campanha de marketing levada a cabo pela Activision, que distribui o jogo, que rivaliza facilmente com aquelas das maiores distribuidoras de Hollywood.
E, apesar disso tudo, Destiny 2 triunfa, pelo menos nas horas iniciais, porque a Bungie, após anos passados a afinar a saga Halo e a torná-la num dos principais cavalos de batalha da Xbox, anda nisto há tempo suficiente para saber exatamente o que está a fazer. Há uma fluidez e uma satisfação primária nos melhores momentos de Destiny 2 que nos fazem esquecer que tudo o que estamos a fazer é a disparar sobre o centésimo inimigo consecutivo, repetindo um ritual que só não é imemorial porque os jogos de vídeo, se comparados à música, ao teatro, à literatura e afins, ainda não saíram da infância.
Há momentos quase operáticos aqui em que mecânica e design de níveis se encontram com resultados memoráveis; nesses momentos, esquecemos que estamos metidos numa qualquer luta contra o mal (frases pirosas do género “welcome to a world without light”, que ouvimos perto do início do jogo, põem a fasquia bem baixa no domínio das suas ambições narrativas), a meio de uma “missão” com “objetivos” e relaxamos o olhar, rendidos a um sobreaquecimento sensorial irresistível, antes de emergirmos do outro lado, quebrado esse efeito temporário que no entanto não tarda a ser replicado (e não podemos deixar de recomendar que se jogue Destiny 2 a meia-luz e com auscultadores, se se quer a experiência total).
A Bungie sabe o principal: que os videojogos são melhores quando os deixamos ser videojogos, quando a atenção é posta no que realmente interessa. Tal como no cinema, em que frequentemente livros medíocres dão filmes fabulosos (que o diga Alfred Hitchcock, que fez esse passo de mágica mais que uma vez) e vice-versa, também no domínio dos jogos de computador interessa mais o que se faz com a premissa do que a premissa em si.
E isto ainda agora começou. O meu personagem – um tipo de ar esquisito, de tez azulada e olhos cor-de-laranja, que parece ter abandonado uma carreira promissora na música emo para, enfim, salvar o universo e tal – progrediu ainda apenas metade do máximo permitido, atingindo o nível 10 de 20, e tem mundos por explorar e muitas horas de destruição pela frente. Depois, começará outro Destiny: o das missões cooperativas e competitivas online, destinadas (como resistir a este verbo?) a perpetuarem-se através de generosos lançamentos de conteúdo adicional. O primeiro Destiny teve uma evolução curiosa, dando seguimento a um lançamento de grande fulgor comercial mas relativo arrefecimento pela parte crítica especializada com um crescimento galopante suportado por uma legião de fãs dedicada que pôs mais horas no jogo do que o razoável e medicamente recomendado. O fabuloso destino de Destiny 2 é fazer ainda mais.
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