Tearaway Unfolded é um jogo para os mais novos com excelentes gráficos, uma bela banda sonora e uma história imersiva. Podia ser uma obra exemplar, mas não é.
Eu nunca tive muito jeito para trabalhos manuais. Em miúdo, as minhas brincadeiras passavam, essencialmente, por desenhar com papel vegetal o Astérix para, mais tarde, voltar a fazê-lo, sem o auxílio do papel. Nunca ficaram grande coisa. A minha imaginação era estimulada pelos livros de aventuras e fantasia, quadradinhos do Tio Patinhas pelo Carl Banks e pelo Don Rosa e os inúmeros videojogos na minha Mega Drive e Game Boy. Nunca precisei de grandes actividades no infantário para me posicionar em mundos distantes, em demandas recheadas de peripécias lendárias. Jogos como Sonic the Hedgehog, Dynamite Headdy e Pokémon Red ajudaram, na minha mente infantil, a estabelecer metas, a criar uma noção em constante desenvolvimento do bem e do mal, a desenvolver a criatividade quanto a tudo o que me rodeia. Claro que existiam jogos didácticos para PC, maioritariamente, que tentavam mascarar contas aritméticas e exercícios gramaticais com o Homem-Aranha, os X-Men e animais falantes. Mas não me cativavam assim tanto. Não quer dizer que não tenha aprendido nada com eles – é óbvio que sim – contudo, sempre os vi mais como tarefa do que propriamente uma diversão.
No fundo, o que quero dizer é que não precisei, como a grande maioria dos meus colegas da altura, de qualquer bengala educativa que nos conseguisse potenciar a capacidade para raciocinar por nós próprios, desenvolver o nosso eu e estimular a nossa criatividade. Tearaway Unfolded chega num momento em que a discussão sobre os jogos do target onde se posiciona é: serão os videojogos inibidores da criatividade e imaginação das crianças, principalmente na fase da formação da sua personalidade? Este jogo prova que não. Vou tentar, na minha análise, convencer-vos disso.
Guião
O guião é minimalista, se apenas nos focarmos na sinopse. Tearaway Unfolded é sobre um mensageiro – que se pode chamar Iota, se escolhermos o rapaz, ou Atoi, se escolhermos a rapariga – que está numa missão para nos entregar uma mensagem. Há que referir que nós somos chamados pelas personagens como “O Tu”. O mundo de Tearaway foi invadido por seres em forma de jornais, que tornam a paisagem recheada de dobras de papel feia e cinzenta e cabe-nos a nós dar luz (literalmente) ao mensageiro para terminar com este suplício. E ao início é mesmo só isto. Contudo, à medida que se vai avançando no jogo, torna-se claro que as imagens e os sons mais infantis servem de primeira película para um subentendido mais profundo. Até ao final, damos connosco absolutamente conectados com o nosso mensageiro. A conclusão é calorosa, muito ao estilo Pixar mais adulta – Up salta logo à memória – acabando por entreter miúdos e graúdos. Preparem-se porque, como os excelentes filmes de animação infantis, a emoção pode chegar quando menos esperarem.
Gráficos
Oh, oh, oh! O melhor desta e da geração anterior dos videojogos é a cada vez maior proliferação de jogos onde as normas e as bases pré-concebidas dos títulos AAA não passam de papéis para rasgar e colar, de novo, numa direcção completamente diferente. Os gráficos de Tearaway Unfolded entram nesta categoria. É um repasto focar com atenção cada dobra, cada tira de papel, cada forma imaginativa e criativa como formas, árvores, cenários são fielmente recriados em papel, no nosso ecrã. São píxeis, números binários que compõem o grafismo do jogo. Mas para os pequenos, será altamente real. Jogá-lo com o auxílio do PlayStation VR seria, sem dúvida, uma experiência completamente diferente e, garanto, muito mais imersiva. Porém, se os destinatários de Tearaway Unfolded for os vossos petizes, não se preocupem – têm muito detalhe visual para, junto dos vossos pequenos, apreciarem o excelente trabalho desenvolvido pela Media Molecule.
Banda-Sonora
https://www.youtube.com/watch?v=cmRgjIIaomU
A banda-sonora de Tearaway é uma agradável surpresa. Deixo-vos este tema, “The Orchards”, que encapsula na perfeição o ambiente musical do jogo. Temos uma mescla entre o folk, muito celta no uso dos violinos e das flautas, com os ritmos mais africanos, presentes na percussão bastante ritmada e de instrumentos vários. Relaxa e ajuda-nos a conceber o mundo de Tearaway Unfolded com maior imersão. Para além disso, casa na perfeição com o ritmo do jogo. Sem adrenalina, sem tempos acelerados, é um jogo para se desfrutar, como se de um chá quente numa tarde fria de Outono se tratasse. E a música ajuda-nos a alcançar este espírito na perfeição.
Jogabilidade
Falemos então daquilo que compõe o jogo à séria. E a mecânica central passa, essencialmente, por guiarmos o nosso companheiro com a “luz” que incide do nosso comando, como se fossemos Deus, no pequeno mundo das dobras de papel. A variedade é grande, desde secções de saltos até alguns puzzles bastante simples. Está aqui um bom parque de diversões para motivar qualquer miúdo de hoje a jogar e a divertir-se com um bom desafio. O que me traz ao maior problema que encontro com este jogo. Eu tenho 25 anos. Poupando-vos a matemática, cresci justamente nos anos 90. Não sofri com as dificuldades épicas de Contra e Ninja Gaiden, na NES, mas vi-me aflito com o Megaman 2 para o Gameboy, o Gunstar Heroes fez-me repeti-lo vezes e vezes e vezes sem conta, E POR FAVOR QUE NINGUÉM SE LEMBRE DE FALAR DA TRETA DO GINÁSIO DA SABRINA NO POKÉMON RED! A verdade é que nenhum destes jogos nos explicava o que precisávamos de fazer. Nenhum Megaman nos diz quais são as armas que vencem os bosses. O Gunstar Heroes não nos oferecia um modo tutorial para conseguir fazer todos os movimentos. O senhor à frente do ginásio de Saffron City nunca nos preparou para o facto de que A PORCARIA DOS POKÉMON FANTASMA E INSECTO SÃO, NA ESMAGADORA MAIORIA, TAMBÉM VENENO E PORTANTO FRACOS CONTRA OS PSÍQUICOS. Desculpem. Ainda hoje acordo com aquele maldito Alakazam a olhar para mim. No fundo, o que quero dizer é que nada nos era dado de bandeja. Nem a língua – era tudo em inglês, numa época onde o ensino da língua só começava no 5º ano (a partir dos 11 anos em Portugal). Ou seja, a probabilidade de entendermos sequer o que nos diziam era diminuta. Mas jogámos, e estudámos, até entender tudo e conseguir dominar cada jogo. Tearaway Unfolded teria a dificuldade de um jogo didáctico para as crianças da minha geração. O que é francamente triste. A dificuldade nos jogos não retira, de forma alguma, o prazer retirado nas suas conclusões. Contudo, ter tudo explicadinho ao pormenor pela Cristina Cavalinhos – voz da Bulma – acaba por retirar mérito às conquistas no jogo.
Diversão
Apesar de tudo, é divertido jogar Tearaway Unfolded? Pelo pacote inteiro, é. Chegar ao fim do jogo acaba por trazer uma satisfação emocional e os visuais extremamente bem conseguidos ajudam a empratar o conjunto. Mas é daqueles que, mal se termina o jogo, fica na prateleira e de lá não volta a sair. A menos que o vosso pequenote queira jogá-lo até à exaustão. Porém, não se preocupem. Descobrir todos os pequenos pormenores e detalhes que conferem o charme e a personalidade a este título deixar-vos-á, no fim da demanda, com um sorriso de orelha a orelha e com o vosso instinto gamer satisfeito. Pelo menos o meu, ficou.
Conclusão
O busílis de toda esta análise girava à volta da estimulação da capacidade criativa de uma criança, com recurso a Tearaway Unfolded. A resposta é sim e não. Sim, porque os gráficos altamente vibrantes, o realismo quase assustador do mundo feito por dobras de papel, a personalidade do nosso mensageiro e das personagens que o rodeiam, todas pontilhadas com a história surpreendentemente emocional e recheadas de uma banda-sonora de nível muito superior a inúmeros títulos AAA, acabarão por levar a criança a entrar num outro mundo. Por outras palavras, serão sem dúvida a sua história, a sua aventura, as suas peripécias que a ajudarão a estabelecer alguns pontos iniciais na sua formação criativa e emocional? Não, porque a jogabilidade demasiado facilitada não puxa verdadeiramente pelo jogador, o que apenas fomentará a preguiça mental na conclusão do jogo e de outras tarefas não associadas ao acto do videojogo. Como se diz em bom português, é habituar o menino a ter “a papinha toda feita”. O que traz sérios bloqueios futuros na formação da criança enquanto pessoa capaz de raciocinar e criar processos que lhe permitam improvisar, na face de uma qualquer barreira. Mas isto é só a minha opinião – sou profissional de comunicação, não um psicólogo. Apenas fui habituado doutra forma. Assim, não consigo dar uma pontuação maior porque, acima de tudo, esta continua a ser a minha opinião. Tenho pena que assim seja, porque este jogo poderia ser uma obra exemplar.
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