Teremos sempre Paris, Texas. O trocadilho é fácil e já foi feito antes mas cabe como uma luva ao filme de 1984 de Wim Wenders, história inesquecível de almas à deriva numa América de estradas abertas e caminhos intermináveis pelo deserto, um daqueles filmes que vive quase melhor na memória que temos dele do que quando projetado na tela.
Toda a oportunidade e qualquer ocasião é boa para voltar a Paris, Texas, ainda para mais num ano em que à reposição em sala do filme, numa edição restaurada, em Fevereiro, se sucedeu a morte de Sam Shepard, o dramaturgo que foi também ator, e escreveu o filme a meias com L. M. Carson, em Julho, e agora, na última sexta-feira, a de Harry Dean Stanton, esse ator alto e magro, granítico, de feições misteriosas e com muito da experiência mística americana posta na face, que teve aqui, talvez, o ponto mais alto de uma carreira onde andou quase sempre a fugir ao protagonismo.
Protagonismo esse que abraçaria aqui, numa escolha sem mácula. Filme de um lirismo particular, Paris, Texas é um road movie ao qual alguém descobriu traços de western, ou será um western com traços de road movie, história de um homem de passado incerto e futuro traçado (Dean Stanton), que sonha com um terreno na pequena localidade de Paris, estado do Texas, que nunca chega a visitar. Homem de poucas palavras, de nenhumas palavras, aliás, quando o filme começa e não é mais que um vulto misterioso no deserto; homem de palavras torrenciais, depois, naquela dupla cena perto do final, assombrosa, frente ao espelho de um peep show, diante da personagem de Natassja Kisnki, com quem partilha, em dois momentos que são masterclasses de como, no cinema, texto e composição se encontram por vezes em momentos perfeitos, os fantasmas do seu passado comum.
Filme que é ao mesmo tempo intensamente americano (a sua força está em muito ligada a um certo imaginário do território e, em especial, do oeste americano, de estradas sem fim rasgando o deserto, de bombas de gasolina paradas no tempo e diners que são portos seguros, da Route 66 e da ideia do percurso, mais que o destino, como motivador da viagem) e também profundamente europeu, fruto como é, acima de tudo, do olhar estrangeiro do alemão Wenders.
E filme inseparável da música de Ry Cooder, que parece ter sido cinzelada e depurada em sessões incontáveis até sobrar apenas a aridez do deserto, música de hipnose casada com o mais hipnótico dos filmes. Vale a pena voltar sempre à música de Cooder (carreguem em baixo e deixem-se levar) e vale a pena voltar, sempre, a Paris, Texas.
Paris, Texas passará esta noite, em sessão especial, no Cinema Trindade, no Porto, e pode ser encontrado facilmente em blu-ray e em sessões regulares na televisão portuguesa.
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